Flores e borboletas
Passa uma borboleta por diante de mim.
E, pela primeira vez no Universo, eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento.
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta.
No movimento da borboleta o movimento é que se move.
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta. E a flor é apenas flor.
(Fernando Pessoa)
No céu da noite que começa
No céu da noite que começa
Nuvens de um vago negro brando
Numa ramagem pouco espessa
Vão no ocidente tresmalhando.
Aos sonhos que não sei me entrego
Sem nada procurar sentir
E estou em mim como em sossego,
Pra sono falta-me dormir.
Deixei atrás nas horas ralas
Caídas uma outra ilusão
Não volto atrás a procurá-las,
Já estão formigas onde estão.
(Fernando Pessoa)
Exígua lâmpada tranqüila
Li hoje quase duas páginas
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
(Alberto Caeiro)
Em que não terei olhos
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Cuja cortina não muda
Coloco a visão daquela
Que a alma em si mesma estuda
No desejo que a revela.
Não tenho falta de amor.
Quem me queira não me falta.
Mas teria outro sabor
Se isso fosse interior
Àquela janela alta.
Porquê? Se eu soubesse, tinha
Tudo o que desejo ter.
Amei outrora a Rainha,
E há sempre na alma minha
Um trono por preencher.
Sempre que posso sonhar,
Sempre que não vejo, ponho
O trono nesse lugar;
Além da cortina é o lar,
Além da janela o sonho.
Assim, passando, entreteço
O artifício do caminho
E um pouco de mim me esqueço
Pois mais nada à vida peço
Do que ser o seu vizinho.
(Fernando Pessoa)
Ele amava a água sem sede
Navio que Partes
Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Porque quando te não vejo, deixaste de existir.
E se se tem saudades do que não existe,
Sinto-a em relação a cousa nenhuma;
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade.
(Alberto Caeiro)
Clareia cinzenta...
E a sombra está aqui...
Começa a haver meia-noite
Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro andar...
Não oiço já passos no segundo andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...
Vai tudo dormir...
Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! -
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel - demasiado rápido! -
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dóí-me...
Vai tudo dormir...
Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa.
(Fernando Pessoa)